segunda-feira, 20 de julho de 2015

Para a MI *

rodrigo amarante | the ribbon


Sei que algum dia terei de contar-te a nossa história. Perdoa-me se, por agora, rasguei fotografias e cartas de amor antigas, se atirei com todas as lembranças mais felizes ao caixote do lixo. Sei que um dia irás perguntar-nos e cada um de nós terá a sua versão, mais ou menos fantasiada. E eu não quero faltar-te à verdade, nunca. Escrevo estas linhas enquanto a memória não me atraiçoa, - ou talvez me fuja já a realidade, misturo amor e dor no mesmo prato e sirvo tudo frio, de lágrimas nos olhos - enquanto tu dormes um sono afogueado pela febre. Passaram quase dez meses desde que nasceste - o tempo passa tão veloz, esta é a primeira das lições. E tu sempre foste um raio de sol, desde aquele quente fim de tarde de Outubro, um sorriso aberto, uns olhos brilhantes e acesos nas nossas vidas. Nunca uma cólica, uma queixa mais zangada, nunca uma constipação mais chata, nunca uma doença, uma febre. Até hoje. Hoje ouvi pela primeira vez o teu choro aflito, talvez de dor, talvez de medo, ainda não sei. E tive medo também. Pela primeira vez tu choraste de ajuda e só eu estava lá. Preparei-me durante meses para este momento, não serviu de exemplo. Quando estavas na minha barriga imaginava que seria o teu pai a pegar-te ao colo, a dar-te mimo, - porque eu sempre me senti de mãos e garganta atadas no que toca aos afectos - quando o meu coração ficasse embrulhado de preocupação, o teu pai iria logo em teu socorro antes que eu começasse a inventar coisas. As meninas acham sempre que os pais são uns heróis, não é? Mas hoje o teu pai não estava lá, a febre atacou, e foi nos meus braços que adormeceste, cansada do choro, com os olhos marejados, vermelhos de dor. Hoje, pela primeira vez, senti tanto medo. Medo por ti, por não conseguir acalmar-te no meu peito inquieto, medo por pensar que - se calhar - era o colo do teu pai que querias, que precisavas. E ele não está. São só umas cidades de distância, coisa pouca, mas ele não está e o teu choro continua pela tarde fora, nunca pára. Sabes, costumava dizer que conhecia o amor só de ouvir falar. Dos livros. Encontrei o teu pai numa livraria. Não liguei ao acaso. Voltamos a ver-nos anos mais tarde, ele não se lembrava de mim - encomendei um livro que nunca mais fui lá buscar. Fugi da cidade e fui encontrá-lo a ele. Acho que começou aí. Lembro-me de uma das nossas primeiras conversas sérias: as pessoas perdem-se, encontram-se umas às outras, para depois voltarem a perder-se de novo. Qualquer coisa assim. Não lembro bem porque não liguei muito ao caso. Afinal eram só palavras. A culpa foi dos livros, filha. Eu já escrevia na altura, sempre para me salvar. Comecei depois a escrever para ele, este blogue é testemunha - nem sei como não apaguei também tudo isto. Escrevo para me salvar agora, enquanto tremo de nervos e choro para ninguém ouvir. As palavras não servem de nada mas, para que saibas, foram elas que nos juntaram. E eu achava que a nossa história era a mais bonita de todas, desafiava tudo e todos - o que eu lutei contra o olha o que eu te digo!, e exibia o nosso amor como uma bandeira. Olha, afinal isto não acontece só nos livros, olha nós aqui a mostrar que não! Depois vieste tu e eu tinha a certeza que a felicidade só podia estar completa, eras tu a prova viva do nosso amor. As fotografias escancaravam a minha felicidade, havias de ver. Agora sei que o amor não precisa de espectadores - dá inveja, tanta inveja a quem não o tem. E se eu alguma vez o tive, alguém o roubou ou ele fugiu a correr, já não interessa mais. Ficaste tu, a prova viva do amor que eu só conhecia de ouvir falar, Agora conheço-te a ti, amor maior do mundo, orgulho do fundo dos meus erros. E quem me dera a mim que sejas sempre muito feliz, que conserves esse sorriso no caminho. Esquece os livros, aproveita a vida e sonha muito de olhos fechados, minha filha linda. Sim, eu sei. A nossa história terá de ficar para outro dia. Deixa-me só secar as lágrimas, meu amor,

boy, she said
you oughta know
classifieds will never show
what the aces do
to the queen of hearts.

i know.

4 comentários:

deep disse...

Tão sentido e tão bonito. :)

Anónimo disse...

a definição de incondicional é isto

Ana disse...

fiquei com um nó na garganta [logo hoje em que fiquei com o coração em frangalhos à conta de uma "pequena" febre...]

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

isto comove...além de estar muito bem escrito...

:(